quarta-feira, 21 de abril de 2010

Uma canção às quintas - O Samba Me Diz

Antes de mais, a canção:



O Samba Me Diz (Fred Martins / Marcelo Diniz)

Cada vez mais me convenço da impossibilidade de separar música e letra, ou de "ler" uma letra abstraindo da melodia. Sobre o assunto, há um texto didático, extremamente didático (leiam com a melodia da canção do Jota Quest, please) de Francisco Bosco: "Letra de canção é poesia? In: BOSCO, Francisco. Banalogias, 2007." Como o texto, salvo engano, não está disponível online, a mesma questão foi (bem) tratada por Antonio Cícero neste post do Acontecimentos.
Bom, teorias à parte, claro que dá pra analisar uma letra sob o aspecto literário, mas a questão é que o contexto do gênero (samba, rock, tango, baião), com seu universo semântico e suas tradições influencia; a ascensão ou a descida da melodia em determinada plavra influencia os entido, a maneira de cantar influencia. Um exemplo retirado de um livro do Luiz Tatit (às favas a referência, hoje é feriado!): a letra de Detalhes, se lida sem conhecimento da canção, parece rancorosa: Não adianta nem tentar me esquecer, durante muito tempoe m sua vida eu vou viver. Que praga de ex, não? Pois bem, a canção cantada é o que é.
Mas nesta apreciação de O Samba Me Diz, não vou entrar nesse pormenores. Eis a letra, pus a pontuação pra facilitar o comentário:


Pode amanhecer. O que doeu assim
já desabrochou com o que eu chorei de mim
Pode o dia vir me despertar.
O que, ontem, era dor, é flor no meu jardim.

Podem espalhar que eu não sei o que fiz.
Podem até zombar de cada cicatriz,
apontar a minha insensatez,
mas não venham dizer que eu nunca fui feliz.

Pode ser que até digam que eu não soube amar,
mas, quem espera do amor só a dor, o saberá?
O amargo sabor já se foi, hoje eu canto o que o samba me diz;
- Não é feliz quem maldiz o amor.

Ouvindo a música meio de relance, por causa da levada e do parentesco com sambas clássicos da bossa nova, principalmente os com letra de Vinicius, a gente imagina que é mais uma história de amor e dor, tipo "todo grande amor só é bem grande se for triste". No entanto, Marcelo Diniz aproveita o universo do samba-canção para compôr uma letra que passa a mensagem oposta, como por exemplo quando admite "pode ser que até digam que eu não soube amar", mas retruca: "quem espera do amor só a dor, o saberá?".

Um dos recursos da letra é o uso repetido do verbo poder na abertura de vários versos, mas com dois sentidos. Nos primeiros versos, o narrador autoriza o dia a amanhecer e a despertá-lo, porque o que doeu já desabrochou, o que ontem era dor agora é flor, celebrando a recuperação de um mal de amor subentendido. No prosseguimento da canção, o verbo poder indica uma possibilidade, "podem espalhar", "podem zombar", "pode ser que digam", ecoando o samba Você e Eu, de Carlos Lyra e ... Vinicius! Que se dane o mundo, pode acontecer o que for, não tô nem aí, não é feliz quem maldiz o amor.

As ordens inversas e o deslocamento do sentido das frases em relação à divisão da melodia (exemplo, no início do samba, "o que doeu assim" não é o que "pode amanhecer", mas é o que "já desabrochou', que está no verso seguinte) reforçam esse estranhamento, que exige que se reouça a canção apra apreendê-la e compreendê-la em sua totalidade. Recursos no qual é mestre Marcelo Diniz, como por exemplo em Raro e Comum, que começa com essa pérola:

Não vou deixar pistas, e tudo
o que eu fizer já terá sido

Não acharam essa coca-cola toda?

Tentem ouvindo a música, e percebam o deslocamento do sentido, como se a vírgula fosse omitida e disséssemos "não vou deixar pistas e tudo". Essas gracinhas com o casamento/afastamento das frases musicais e semânticas dão todo um encanto às canções, embora pra música bonita não tenha receita. Em Raro e Comum ainda tem essa brilhante frase "não vou rimar amor e dor", já rimando. Até a minha filha (deixa de ser coruja, bobo!) percebeu o meta-humor da frase. Em homenagem a ela, colquei o player rosa:


Raro E Comum

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