sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Miles além

Ainda há tempo (até 28/9) de ouver a exposição Miles, no CCBB, uma extensa mostra da obra do genial músico que foi do bebop ao rock passando por cool, free, funk e todos os matizes intermediários do jazz. O verbo da primeira fase não saiu com erro de digitação não, é ouvir/ver, pois a exposição tem câmaras (algumas são antigos cofres do prédio do Banco do Brasil) onde tocam em loop faixas dos trabalhos mais representativos de Miles para os ouvidos e salas com fotos, filmes e capas de disco à mancheia para os olhos.
Sobre vida e obra de Miles, os verbetes da Wikipedia, em português e inglês são bem completos. A onda que vale da exposição é mais o tratamento cenográfico, com iluminações diversas para as diversas fases da trajetória musical, além do som, do som, do som, do som que me fez ficar umas duas horas reouvindo as faixas, naquele contexto ambiente todo.
Dos objetos expostos, tocou-me fundo o saxofone de John Coltrane, que tocou com Miles por exemplo no histórico álbum Kind of Blue e foi soprar suas notas de todas as cores no andar de cima poucos dias antes de eu baixar aqui no planetinha azul (pronto, com dois cliques descobrem minha idade...) e cuja música é uma das minhas coisas favoritas no referido planetinha.
Quando fui ao CCBB estava lendo Muito Além do Nosso Eu, do neurofisiologista Miguel Nicollelis (trecho aqui, resenha aqui, post meu sobre o livro em breve, promessas, promessas...), leitura aliás recomendada pra quem gosta de livros muito bem escritos sobre ciência, e no livro Nicolelis descreve como nossa mente incorpora objetos como parte do nosso eu para movê-los com mais precisão e destreza. Ele dá o exemplo de músicos e jogadores de futebol, tem até uma palestra intitulada Como o Corpo Incorpora a Bola, e trabalha para que um tetraplégico dê o pontapé inicial da Copa de 2014! Em vista disso, ver o saxofone do Coltrane ali, a uma vitrine de distância, foi como ver um pouco desse Eu incrível dele.
As dissonâncias e a exploração de fronteiras musicais do jazz sempre me pareceram, impressão confirmada pela visita, um avanço impressionante no conhecimento humano, totalmente em descompasso com o estágio de evolução simultânea da tecnologia à época, pra não dizer da inteligência social, ambiental e espiritual da espécie, algo assim como se nos anos 40/50 do século XX, alguém inventasse o iPad 7 ou as sociedades começassem a se preocupar de verdade com sua sobrevivência de uma forma mais igualitária e sustentável.
Fica a sugestão pra quem gosta de jazz, música, cultura pop e história do Século XX. Abaixo, Miles Davis transformando em standard, clássico, a canção Time After Time, gravada antes e depois por Cindy Lauper.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Pregui

Inscrevi-me no ciclo de conferências Elogio à Preguiça, mas, em uma piada pronta, não tenho conseguido comparecer, sabe como é, depois do trabalho, minha filha não dorme enquanto eu não chegar etc. Ontem quebrei o paradigma e diverti-me bastante assistindo a José Miguel Wisnik falar sobre Mário e Oswald de Andrade e a relação do pensamento de ambos com a preguiça e o ócio com a costumeira verve e desembaraço, ainda encerrando com a  seguinte declaração desassombrada e macunaímica, acerca de sua promessa, na sinopse do evento, de abordar o tema sob o enfoque dos conceitos de Hannah Arendt, sequer mencionada:
- Eu menti.
Wisnik discorreu com o auxílio de conceitos de Freud, Nietzche e outros que minha memória em barafunda não registrou, ampliando a compreensão de textos como Macunaíma e Manifesto Antropofágico para além dos estereótipos mais comuns e mostrando as questões relativas aos projetos de Brasil subjacentes aos trabalhos andradinos.
Em meia tuitada, o dilema à época era de que se o Brasil se moderniza perde a riqueza da cultura popular, e se fica preso à cultura popular não se moderniza. Como veem, questão bem atual.
Em hora e meia de palestra, José Miguel apresentou as complementaridades entre os dois Andrades, contou histórias deliciosas de ambos e resumiu a busca por um modelo diferente do atual, de que o ciclo de conferências é um exemplo, fazendo uma comparação entre as sociedades da dívida e da dádiva (jogo de sonoridades que, claro, deu música do MC Rashid, que não cheguei a ouvir).
No modelo presente a lógica é uma dívida crescente feita para nunca ser paga, vide crise americana, e que mimetiza a dominância na cultura ocidental da ideia de ações com finalidades definidas tentando escapar de um fim, evitando falar de morte, por exemplo.
Já em sociedades indígenas, a lógica é a dádiva, não no sentido de descompromisso e gratuidade, mas do estabelecimento de uma rede de trocas que se retroalimenta e se sustenta no tempo, sem fim, criando laços entre as pessoas da sociedade.
Na volta pra casa, tocava na minha cabeça só essa canção do Caetano, por causa do verso "vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor". Essa versão abaixo é nova, com Marisa Monte, Rodrigo Amarante e Devendra Banhart. A original do Caetano é essa aqui, e ainda tem vídeos de versões com ele e Teresa Cristina e Adriana Calcanhotto.
Pretendo voltar em mais conferências, algo me diz que andei perdendo muito...