domingo, 31 de julho de 2011

Tipo um disco do Chico

A fotogramas tantos do documentário Dia Voa, sobre a gravação de seu novo disco, CHICO, Chico Buarque fala sobre ESSA PEQUENA (faixa 3): "Não é um blues, é tipo um blues. Aliás, tudo nesse disco é assim, TIPO UM BAIÃO (faixa 4), tipo uma valsa." E arremata, ironicamente: "tipo um samba". Pois é, CHICO é tipo um disco do Chico. Fabuloso, brilhante, riquíssimo de detalhes, nuances, chistes musicais e verbais, referências quase infinitas a músicas suas, a músicas do próprio disco, a obras literárias, em um jogo de espelhos marcados pelo tempo, onde a imagem dos duplos vem distorcida, ligeiramente alterada, refeita, recontada.
Se alguém tem 30 reais e 31 minutos pra gastar, compre e ouça o disco, é o melhor investimento musical que vai fazer em muito tempo.
Assim como as canções do disco são a sua visão de ritmos variados, filtrada por uma formação de fã da canção americana dos anos 50 que sofreu, como todos de sua geração, o choque do fenômeno João Gilberto e da Bossa Nova, o disco é a visão do Chico Buarque de hoje, 67 anos, namorando uma mulher de 30, depois de todas as transformações porque passou o mundo desde que ele compôs por exemplo, A Banda.
Sobre o disco, outros já escreveram com muito mais conhecimento e competência que eu. Recomendo os textos de José Miguel WisnikFrancisco Bosco (cujo título brinca de espelhar essa assombrosa canção de Chico, do disco Paratodos, Tempo e Artista, que venho pensando em mencionar aqui num post pensado e não escrito (como tantos...) sobre o domínio que o artista alcança de seu ofício com o tempo, pensando em Chico, João Bosco e Paul Simon, por exemplo) e Arthur Nestrovski, este incluindo comentários específicos sobre as harmonias e melodias de cada canção.
Claro que os três autores compartilham muitas ideias sobre canção, são fãs confessos do Chico, e portanto estaríamos diante de um caso típico de filtro-bolha, mas em se tratando de Chico, os bolhas são os que estão fora da bolha, por assim dizer.
Quanto a reações ao disco, muita gente parece querer aquele Chico dos anos 70, por aí. Deve haver muitas razões para isso, mas enxergo principalmente três:
1) Quem foi jovem naquela época lembra das músicas da juventude, da sua juventude, e atribui a elas uma qualidade e relevância maior do que às de agora.
2) A música de Chico era o mainstream da música de classe média (existe isso?), era o que todo mundo bem-informado (existe isso?) ouvia, gostava, dizia que era bom. Hoje, tudo é tão segmentado que não tem mainstream. Tem que ouvir e gostar ou desgostar por si mesmo.
3) O lado musical do Chico compositor foi incorporando novas harmonias, melodias, e ficou mais distante da música chiclete, fácil de decorar e sair cantando. (Embora Chico, o disco, tenha várias canções decoráveis e assoviáveis).
Bom, e o disco? Em conversa com João Bosco, seu parceiro em SINHÁ (faixa 10), Chico comenta que o lançamento gradual das músicas pelo site permite que se vá conhecendo-as aos poucos, e João acrescenta que é preciso dar ao disco seu tempo, ao que Chico conclui: "Pois é, primeiro o cara tem uma música favorita, depois é outra, é assim mesmo" Aqui do alto das minhas 34 57 62 audições, concordo. A faixa que abre o disco, QUERIDO DIÁRIO, foi lançada há um mês no tal esquema do site - que abandonei após ouvir essa canção, preferi aguardar o disco completo, e não me arrependi - e teve seu reinado de 17 audições ao dia aqui em casa (para desepero da minha filha de 7 anos, mais afeita aos Justins Biebers da vida...). SE EU SOUBESSE, que pra mim devia se chamar LARARI, já era conhecida no dueto de Thais Gulin e Chico no disco dela, e também foi, segundo o Itunes, ouvida naquela versão 52 vezes (fora as no Ipod... - essa aqui a Clara já cantarolava o larari junto hehehe). A nova gravação repete o dueto com outro arranjo.
Das outras oito canções, minhas favoritas vêm flutuando entre RUBATO, TIPO UM BAIÃO, SEM VOCÊ 2, BARAFUNDA e SINHÁ. As outras três (ESSA PEQUENA, SOU EU e NINA) também são absolutamente geniais, mas de toda a obra do Chico eu só não gosto muito de umas três ou quatro, então não chega a ser vantagem.
Mas vamos às músicas. O disco é um disco "cheio de amor pra dar", como diz Chico. Um amor maduro, com a sabedoria  e o possível ridículo do sessentão, e a possibilidade do sentimento do jovem, ainda segundo o próprio. As canções seguem na maioria a temática do amor, ainda que muitas vezes como primeira leitura, trazendo por trás outras reflexões.
QUERIDO DIÁRIO (faixa 1) até fala do amor ("hoje afinal conheci o amor / e era o amor uma obscura trama), mas é um diário, um retrato do cotidiano, de um novo cotidiano, como frisa Chico, que polvilha ao longo das letras do disco todo diversas observações sobre esse mundo que é tão diferente do que já foi o mundo pra quem tem 67 anos (ou 43... - sobre nostalgia, épocas de ouro e etc, ver o texto do Caetano, citado pelo Antonio Cícero, sobre Meia Noite em Paris, do Woody Allen - mas antes corram ao cinema e vejam o filme!). Querido Diário tem urbanidade, caos urbano, busca de espiritualidade, violência e relações amorosas, encerrando em uma estrofe meio roseana,  onde a mania de Chico de alterar as letras até o último instante tirou da versão cantada o detalhe "trouxe um porreta e um porrete a mode me me quebrar", como está no encarte. Ouve-se só "um porrete, um porrete". Menos (ou mais) um jogo verbal, dos tantos do disco. Chico revela que a ideia da melodia veio de uma das músicas que inventa pros netos (como A Ostra e o Vento, que também surgiu dessa forma). A música é "tipo um coco, que vira uma moda de viola". Os versos "de volta a casa na rua recolhi um cão que de hora em hora me arranca um pedaço" me remeteram a um o cão que aparece em História do Cerco de Lisboa, do Saramago, provavelmente pelo uso tão lusitano de "de volta a casa". Ao mesmo tempo, penso no mito de Prometeu, com seu fígado comido a cada dia. A aceleração do tempo e da tecnologia (Prometeu rouba o fogo do Olimpo e o dá aos mortais) faz com que a mordida agora seja a cada hora. Os pedaços que o cão arranca do narrador de QUERIDO DIÁRIO são os nacos de tempo que nos leva o cotidiano. O tempo roubado. O que nos leva a
RUBATO, que na terminologia musical (tempo rubato, tempo roubado em italiano) significa que o intérprete "rouba" um pouco do tempo de algumas notas e o compensa em outras (Wikipedia). Prática comum na canção brasileira, adiantando ou atrasando o canto para coincidir ou não a sílaba forte das palavras com o tempo forte da frase melódica (ver Geraldo Pereira - de quem Chico já gravou Sem Compromisso - João Gilberto, Elis Regina, Orlando Silva etc - incluindo Wilson das Neves, convidado em SOU EU). A historinha da música é de uma canção que vai sendo apropriada por compositores que a roubam e a dedicam a amadas de nomes convenientemente rimados (Aurora / Amora / Teodora - ecos de Bandeira). O último ainda corta um pedaço da estrofe. A brincadeira revive as compras de sambas e a famosa frase atribuída a Sinhô (mas que pode ter sido roubada de outro hehehe): "Samba é igual a passarinho, é de quem pegar primeiro". Rimas como íntima / última, típicas do Chico. A melodia é mais uma do baixista Jorge Helder, que já tinha emplacado a bela e difícil (existe isso?) Bolero Blues no disco anterior, Carioca, sobre a qual Chico teve um sonho extremamente revelador do tal descompasso entre o Chico que muitos querem ouvir e o Chico que mudou e faz músicas assim, lindas e "esquisitas", como ele diz.
ESSA PEQUENA é um blues com rimas da melhor lavra buarquiana, com Chico cantando acorda com sotaque paulista (curitibano?) (acorrda) pra ficar quase acorida e rimar com Flórida, assim como sobra antes rima com abóbora na música. Só ouvindo mesmo. "Meu dia voa e ela não acorda / Meu cabelo é cinza e o dela é cor de abóbora". Chico diz que a princípio o disco parecia ser fundamentalmente sobre seu amor pela música, pois várias letras falam o nome do gênero ("sinto que ainda vou penar com essa pequena / mas o blues já valeu a pena). O tempo roubado volta em "feito avarento conto os meus minutos, cada segundo que se esvai", enquanto a pequena "esbanja horas ao vento, ai". Os versos "Acho que nem sei direito o que é que ela fala mas / não canso de contemplá-la" nos levam para a quarta faixa
TIPO UM BAIÃO, uma música que começa tipo quase falada, tipo canção sendo feita, acelera, desacelera, brinca com divisões e ritmos (tempo rubato, lembram?) e usa expressões do dialeto adolescente (tipo assim, igual que nem, mané, se jogar de cara). Chico rima através com abadás, o coro entra com tudo no final totalmente assoviável e decorável da canção: "Meu coração / que você sem pensar / ora brinca de inflar / ora esmaga / igual que nem / fole de acordeão / tipo assim no baião / do Gonzaga". Uma guitarra distorcida encerra a faixa e temos, outra vez, uma obra-prima. (Deu pra ver que é a favorita de hoje? Esperem até a faixa 6 - Sem você 2)
SE EU SOUBESSE já valia só pelo verso "Ah, se eu soubesse nem olhava a Lagoa", e pelo larari. Mas ainda por cima é uma música linda, com muitas variações de melodia e letra reiterando a inevitabilidade do amor cantado em dueto. E é, como disse o Francisco Bosco, uma dessas músicas pra ficar na cabeça, e que só não é hit porque não se fazem mais hits como antigamente, no sentido de que a canção brasileira não tem mais essa presença cultural. Não me venham com Luan Santana, data venia a minha filha!
SEM VOCÊ 2 começa nos acordes da Sem você original, de Tom e Vinicius, que Chico cantou em shows como homenagem à partida de Tom. A primeira estrofe parece falar do Tom: "Sem você é o fim do show / tudo está claro tudo é tão real / as suas músicas você levou / mas não faz mal" Depois vamos vendo que trata-se de uma música de fim de amor, e a homenagem só fica mais viva aos dois mestres. Até porque (diz o Nestrovski, eu não entendo nada disso!) as harmonias vão se modificando ao longo das estrofes, acentuando a melancolia suave da letra. Só ouvindo mesmo (já disse isso?). "Sem você o tempo é todo meu / posso até ver o futebol / ir ao museu / ou não / passo o domingo olhando o mar / ondas que vêm / ondas que vão / sem você é um silêncio tal / que ouço uma nuvem a vagar no céu" O verso "passo o domingo olhando o mar" me levou de novo a questão do tempo roubado. Quem hoje passa um domingo olhando o mar, embora muitos o passem no Facebook? Outro dia li um texto da Zélia Duncan Se Noel fosse Caymmi, sobre a prolixidade do primeiro versus a longevidade do segundo. Nem concordo com a conclusão meio na brincadeira do texto, mas me pergunto, e se Caymmi tivesse ficado a acessar o Livro de Faces em vez de olhar o mar? Nessa Sem Você 2, aparece ainda outra marca de Chico (o disco e o compositor): dizer de maneira ligeiramente diferente a mesma coisa a cada estrofe: mas não faz mal / mas tudo bem / mas não tem nada não. Na repetição do "não tem nada não", com uns acordes daqueles bem Tom, a canção acaba.
SOU EU é um samba mesmo, clássico, melodia de Ivan Lins, uma delícia. A letra é meio o avesso de Deixe a Menina. Aqui o cara não liga pro que a moça faz no salão, pois sabe que quem carrega a moça pra casa é ele, quem manda no samba é ele, quem brinca na área é ele. O rubato volta na interpretação GeraldoPereiriana de Wilson das Neves, convidado da faixa, que brinca na área das divisões e manda no samba. Chico relata no documentário sua dificuldade de gravar em cima da voz de Wilson o trecho final do samba, tal o swing.
NINA é tipo uma valsa, que na concepção original de arranjo de Luis Claudio Ramos tinha orquestras inteiras e ficou com um conjunto menor, mas muito clássico. Os sons da música remetem ao russo. "Nina diz que embora nova (em Boranova?)", "Nina diz que se quiser eu posso ver na tela (Verna Tela?)". A descrição de situações típicas da Internet, com citação ao Google Street View e tudo remete ao linguajar adolejovem de TIPO UM BAIÃO. A música ainda é uma espécie de espelho (outro...) de Iracema, que voou para a América. Assim como em Flor da Idade Chico interpõe uma mesma consoante em cada par de palavras do mesmo verso de cada estrofe (festa / fresta - copo / corpo - dama / drama), os versos finais das estrofes de Nina usam recurso semelhante ao rimarem mapa / rapta e toca / vodka. Só ouvindo, etc.
BARAFUNDA é uma descrição riquíssima de uma memória bagunçada, em que "misturam-se os fatos / as fotos são velhas / cabelos pretos / bandeiras vermelhas". As gerações jovens por certo ignoram, mas houve uma revista com o nome Fatos & Fotos, naqueles tempos. As mulheres citadas na letra incluem Aurora (de Rubato) e Ariela (de Benjamin), além de outras. A sequência da memória evolui pela letra da canção (que a princípio ia se chamar Largo da Memória). Gostei particularmente do trecho "foi Garrincha, não / foi de bicicleta / juro que vi aquela bola entrar na gaveta / tiro de meta" Pra mim o Chico pensou nessa bola aquiA canção volta a sugerir o contraste geracional, entre quem já tem idade pra lembrar de alguma coisa antes do Google, e esse  cotidiano atual de Querido Diário, ou o modo de vida jovem d´Essa Pequena de Tipo um Baião etc. A letra alterna os tempos verbais é, foi, era, nos fazendo suspeitar que a memória é um tempo presente, o presente ficção e/ou vice-versa ao contrário. Pode se ver uma referência ao memorial que é Leite Derramado, seu romance mais recente, o qual por sua vez é inspirado na canção O Velho Francisco. Aliás, Chico lembra que há mais de vinte anos (quase metade de sua carreira) vem alternando música e literatura, e esse disco mostra claras conexões com sua escrita, seja no personagem do narrador de Querido Diário, que nos lembra o de Estorvo, seja na Ariela que surge impossível na memória em Barafunda, seja nos duplos e triplos de Benjamin e Budapeste, salpicados pelo disco, seja na discussão sobre a formação da sociedade brasileira, pano de fundo de Leite Derramado ecoando em Sinhá. O último verso de Barafunda enumera no presente nomes do futebol, da música e da luta pela liberdade/igualdade: "É Garrincha, é Cartola e é Mandela." Todos mestiços ou negros, o que nos leva a 
SINHÁ, retomada da parceria com João Bosco, que tinha rendido em 1984 a bela, dramática e pouco conhecida Mano a Mano. Sinhá é um afrossamba milongueiro, segundo Chico, e tem a participação hiperespecial de João Bosco na concepção do arranjo, violão, assovio e vocais, sendo praticamente uma faixa à parte no disco, e, estranhamente (ou obviamente), funcionando como um fecho perfeito de tudo o que foi dito com letra e música até aqui. Assim como Querido Diário abre o disco e foi a última canção a entrar, aquela que estava na manga (um hábito de Chico), Sinhá, nas palavras de Chico "corria por fora", pois não fora ensaiada com os outros músicos, e teria o arranjo determinado pelo violão de João Bosco, como aliás não podia deixar de ser. O novo clássico da canção brasileira pode ser visto no vídeo de lançamento transmitido ao vivo pela Internet. Sobre uma melodia swingada, percussiva e profunda de João, Chico vai construindo em primeira pessoa o relato de um escravo punido por seus amores com a Sinhá, que ele nega, e o relato confirma nas entrelinhas. No trajeto, até a linguagem vai apanhando, segundo Chico, e o vosmecê virando vosmincê, e o vosmincê virando vassuncê, até que a última estrofe muda o narrador e nos apresenta um cantor de "voz do pelourinho e ares de senhor, herdeiro sarará do nome do senhor e das mandingas do escravo que enfeitiçou Sinhá". Um retrato doído, lanhado, sério, irônico e iluminador do Brasil mestiço. A canção devia ser ensinada nas escolas, proibindo os professores de pedirem interpretação de texto. Toca a música, deixa a garotada ouvir, toca de novo, diz pra pensar naquilo, diz pra escrever o que achou, depois cada um lê pros outros o que escreveu, discute-se, e segue a vida. Alguém aperta o repeat aí.

2 comentários:

  1. Li o post e fiquei doida para ouvir o CD...

    ResponderExcluir
  2. Apesar do tamanho do post, ainda esqueci de dizer duas coisas:

    1) O Chico está cantando melhor que nunca (e eu não acho, nunca achei, que ele cantasse mal). Como diz o Nestrovski em seu texto, ninguém pronuncia as palavras da canção como ele. Para suas próprias letras, isso me parece fundamental, a maneira de dizer a palavra cantada.

    2) Quando a gente cai na real que Sem Você 2 tá falando de uma mulher que foi embora, o verso "As suas músicas você levou" é mais um comentário do novo cotidiano. Diferentemente do cara de Trocando em Miúdos, que ficava com o disco do Pixinguinha, sim, a moça aqui leva as músicas. No iPod, no iTunes, no Mp3.

    ResponderExcluir