Em andanças lá pelo site de (como dizem niteroeienses e baianos, em vez do do carioca) Leoni, criei o ESCOL@ - EScritório de COnsultoria de Letras @lheias, pra dar palpites não solicitados (embora geralmente bem aceitos) nas letras dos concursos.
Parêntesis rápido: rola até quinta (2/9) uma votação, estou apoiando o meu amigo Nuno Rau, com sua Influência da Bossa. Cliquem AQUIpra votar.
Pois bem. O ESCOL@ aplica conceitos aprendidos nas oficinas de letra de música de Fred Martins, Francisco Bosco e Marcelo Diniz, nos 40 anos de audição de boa música, nas paródias e letra compostas e por aí vai. Mas sempre na brincadeira, pois tudo isso só me deu a certeza de que não há receita pra se fazer uma letra de canção.
Como bem demonstram dois dos professores citados, Fred e Marcelo, neste soneto do segundo que virou canção no violão do primeiro, retirado do conciso e incrivelmente lindo livro artesanal DE AMOR E SOBRE (Oficina Raquel, 2008), cuja capa encima este post.
A canção tem uns acordes beatle de Strawberry Fields e/ou Álbum Branco com um que de Luiz Gonzaga que não sei definir. Talvez só na minha cabeça. De todo modo, calo-me, para que vocês ouçam:
DEPRESSA A VIDA PASSA (Fred Martins – Marcelo Diniz)
Depressa a vida passa, mal se sente e tudo já parece diferente: o que doeu um dia hoje é dormente, o amanhã não se lembra do presente;
e mal tudo é passado, o mais recente começa a tecer o recorrente: a cada ruga tudo é mais ausente, o tempo foge e sempre leva a gente;
fascina como a infância é inocente: eterno no vigor do adolescente, no idoso, ainda crepita o sol poente;
fascina como tudo é transparente: depressa a vida passa e, de repente, desfaz-se, n´água, a face que a ressente.
Não sou um irremediável saudosista, ao contrário do que as mil palavras aí ao lado podem sugerir, mas continuo achando que a audição de canções em um álbum, com uma sequência predeterminada, com um conceito artístico as amalgamando, é uma experiência estética única e relevante, assim como o modo aleatório do Ipod, que é outra onda.
O disco que me fez hoje reafirmar essa convicção - e me distrair um pouco de outro um a zero nessa irresístivel e morna Copa do Mundo (irresístivel por fazer parte da infinitologia épica que retorna a cada quatro anos, infalível, e morna pela escassez de brilho e gols, e pela concentração de 20 jogadores em mil metros quadrados de um espaço que foi feito com sete mil pra se jogar. Pra vocês verem o poder gravitacional da bola...) é Agora o céu vai ficando claro, de Regina Machado, com composições de Fred Martins, Chico Saraiva, Celso Viáfora, Luiz Tatit e outros.
Não conhecia a Regina, que tem uma voz que me lembrou Mônica Salmaso, só que mais imperfeita, no bom sentido. Acompanhada pelos brilhantes violões de Italo Peron e Norberto Vinhas (com direito a crédito na capa), vocais e percussão vocal dela mesma, Regina desfia um repertório delicado e intenso, em que as canções conversam entre si, e o backing vocal de uma faixa reaparece em outra, como amigos que se encontram por acaso no metrô. Em alguns momentos a gente nem percebe que o disco passou pra outra faixa, sem que com isso a levada das canções caia na mesmice.
Embalados em melodias bem desenhadas, espalham-se pelo disco versos como "Quem vive sofrendo, um dia se acostuma / Quem vive chorando, um dia se acostuma / Quem vive perdendo, um dia se acostuma / Ah, meu amor, se for pra acostumar / Prende a tristeza no pé da mesa / E vamos nos amar / Pra se desconhecer / Depois se acostumar" (Costume - Chico Saraiva, Celso Viáfora) ou "Usando as chaves da cidade / Eu tranco as portas / marginais / e o metrô / Será a cidade enfim / De mais ninguém / Só de nós dois / Eu quero a cidade assim / Não em milhões / toda pra nós dois / Carros bagunçados pelas ruas / quase tudo que passou / De rosto colado nós / dançamos sobre esse chão / multicolor" (Multicolor - Leo Bianchini, Fabio Barros)
O título do álbum saiu da letra desta bela parceria de Fred Martins e Francisco Bosco (cujo verso mais desconcertante, no entanto, é "Eu que tô sem chão no alto da gangorra")
Perfeitamente, de Fred Martins e Francisco Bosco, por Regina Machado
Reparem que a segunda estrofe da canção, que se inicia com o verso da gangorra, vem com ritmo acelerado e a melodia torna-se picada, nervosa, criando um efeito, digamos, dramático. O céu vai ficando claro, você me esquece e eu afundo. Essa foi digna do tempo do toca-discos, aliás em perfeito contaponto à proposta da letra de O Samba me Diz, que abre o disco, e da qual já falamos aqui.
Cada vez mais me convenço da impossibilidade de separar música e letra, ou de "ler" uma letra abstraindo da melodia. Sobre o assunto, há um texto didático, extremamente didático (leiam com a melodia da canção do Jota Quest, please) de Francisco Bosco: "Letra de canção é poesia? In: BOSCO, Francisco. Banalogias, 2007." Como o texto, salvo engano, não está disponível online, a mesma questão foi (bem) tratada por Antonio Cícero neste post do Acontecimentos.
Bom, teorias à parte, claro que dá pra analisar uma letra sob o aspecto literário, mas a questão é que o contexto do gênero (samba, rock, tango, baião), com seu universo semântico e suas tradições influencia; a ascensão ou a descida da melodia em determinada plavra influencia os entido, a maneira de cantar influencia. Um exemplo retirado de um livro do Luiz Tatit (às favas a referência, hoje é feriado!): a letra de Detalhes, se lida sem conhecimento da canção, parece rancorosa: Não adianta nem tentar me esquecer, durante muito tempoe m sua vida eu vou viver. Que praga de ex, não? Pois bem, a canção cantada é o que é.
Mas nesta apreciação de O Samba Me Diz, não vou entrar nesse pormenores. Eis a letra, pus a pontuação pra facilitar o comentário:
Pode amanhecer. O que doeu assim
já desabrochou com o que eu chorei de mim
Pode o dia vir me despertar.
O que, ontem, era dor, é flor no meu jardim.
Podem espalhar que eu não sei o que fiz.
Podem até zombar de cada cicatriz,
apontar a minha insensatez,
mas não venham dizer que eu nunca fui feliz.
Pode ser que até digam que eu não soube amar,
mas, quem espera do amor só a dor, o saberá?
O amargo sabor já se foi, hoje eu canto o que o samba me diz;
- Não é feliz quem maldiz o amor.
Ouvindo a música meio de relance, por causa da levada e do parentesco com sambas clássicos da bossa nova, principalmente os com letra de Vinicius, a gente imagina que é mais uma história de amor e dor, tipo "todo grande amor só é bem grande se for triste". No entanto, Marcelo Diniz aproveita o universo do samba-canção para compôr uma letra que passa a mensagem oposta, como por exemplo quando admite "pode ser que até digam que eu não soube amar", mas retruca: "quem espera do amor só a dor, o saberá?".
Um dos recursos da letra é o uso repetido do verbo poder na abertura de vários versos, mas com dois sentidos. Nos primeiros versos, o narrador autoriza o dia a amanhecer e a despertá-lo, porque o que doeu já desabrochou, o que ontem era dor agora é flor, celebrando a recuperação de um mal de amor subentendido. No prosseguimento da canção, o verbo poder indica uma possibilidade, "podem espalhar", "podem zombar", "pode ser que digam", ecoando o samba Você e Eu, de Carlos Lyra e ... Vinicius! Que se dane o mundo, pode acontecer o que for, não tô nem aí, não é feliz quem maldiz o amor.
As ordens inversas e o deslocamento do sentido das frases em relação à divisão da melodia (exemplo, no início do samba, "o que doeu assim" não é o que "pode amanhecer", mas é o que "já desabrochou', que está no verso seguinte) reforçam esse estranhamento, que exige que se reouça a canção apra apreendê-la e compreendê-la em sua totalidade. Recursos no qual é mestre Marcelo Diniz, como por exemplo em Raro e Comum, que começa com essa pérola:
Não vou deixar pistas, e tudo
o que eu fizer já terá sido
Não acharam essa coca-cola toda?
Tentem ouvindo a música, e percebam o deslocamento do sentido, como se a vírgula fosse omitida e disséssemos "não vou deixar pistas e tudo". Essas gracinhas com o casamento/afastamento das frases musicais e semânticas dão todo um encanto às canções, embora pra música bonita não tenha receita. Em Raro e Comum ainda tem essa brilhante frase "não vou rimar amor e dor", já rimando. Até a minha filha (deixa de ser coruja, bobo!) percebeu o meta-humor da frase. Em homenagem a ela, colquei o player rosa:
Tem um rápido cadastro. Já ouço Pad dizendo, Pô, só faltam pedir a data da vacinação contra a varíola! O que vale é a amizade...
Pra saber em que votar, por que votar, continuem lendo:
Estou de novo em um concurso de composição do site do Leoni. Ele deu um soneto de sua autoria para os interessados musicarem. Mesmo sem tocar nada além de assovio, fiz minha tentativa. Devido a um impedimento da minha amiga cancionista Clara Gomes (do Bichinhos de Jardim, e que tem o mesmo nome e sobrenome da minha filha, mas isso etc.), fui obrigado a cometer uma interpretação (!?) própria, com o auxílio do violão de outro concorrente, o meu amigo... Nuno Rau. Ano passado participei de outro concurso do Leoni, às avessas, como alguns devem lembrar, ele dando a melodia pra gente letrar, o que era mais possível. Quem não viu, taquí. Lembrando que o que estava em jogo era a letra, a interpretação era só pra mostrá-la ;D.
Essas participações são mais um fruto das oficinas de letra de canção de Fred Martins, primeiro com Francisco Bosco no POP, depois com Marcelo Diniz na amena e agradável localidade de São João de Icarahy na Vila Real da Praia Grande, ou, para leigos, Icaraí, Niterói. Minha experiência anterior com as paródias da Praia de Carapebus não impediu que eu fizesse o Fred e o Francisco sofrerem bastante com letras que assim, veja bem, sabe como é, não, tá bom, mas... Algum tempo depois, já dá pra se arriscar mais. Na última oficina ano passado, antes do Fred partir para a ponte aérea Galícia-Nicty, ele fez uma proposta de levarmos uma melodia. Eu tinha uma composta de assovio na rede da casa azul de Titice e família, Parada na Beira do Mar, para a qual o Fred fez uma melodia de segunda parte num exercício da oficina e que aliás precisa ser gravada e mostrada ao mundo, alô Nuno Rau. Agora fico gravando ideias de frases musicais no celular pra não esquecer. Letra ainda é disparado mais minha praia, mas o lance das melodias é divertido.
O concurso do Leoni tem 150 candidatos, vários paredões, um julgamento final com a participação de três compositores e um fórum de debates no site que é absolutamente hilário. E não, eu não comecei o blog só pra agora pedir votos. Tanto que mandei também um e-mail pra (quase) todo mundo que conheço hehehe.