Não sou um irremediável saudosista, ao contrário do que as mil palavras aí ao lado podem sugerir, mas continuo achando que a audição de canções em um álbum, com uma sequência predeterminada, com um conceito artístico as amalgamando, é uma experiência estética única e relevante, assim como o modo aleatório do Ipod, que é outra onda.
O disco que me fez hoje reafirmar essa convicção - e me distrair um pouco de outro um a zero nessa irresístivel e morna Copa do Mundo (irresístivel por fazer parte da infinitologia épica que retorna a cada quatro anos, infalível, e morna pela escassez de brilho e gols, e pela concentração de 20 jogadores em mil metros quadrados de um espaço que foi feito com sete mil pra se jogar. Pra vocês verem o poder gravitacional da bola...) é
Agora o céu vai ficando claro, de Regina Machado, com composições de Fred Martins, Chico Saraiva, Celso Viáfora, Luiz Tatit e outros.
Não conhecia a Regina, que tem uma voz que me lembrou
Mônica Salmaso, só que mais imperfeita, no bom sentido. Acompanhada pelos brilhantes violões de Italo Peron e Norberto Vinhas (com direito a crédito na capa), vocais e percussão vocal dela mesma, Regina desfia um repertório delicado e intenso, em que as canções conversam entre si, e o backing vocal de uma faixa reaparece em outra, como amigos que se encontram por acaso no metrô. Em alguns momentos a gente nem percebe que o disco passou pra outra faixa, sem que com isso a levada das canções caia na mesmice.
Embalados em melodias bem desenhadas, espalham-se pelo disco versos como "Quem vive sofrendo, um dia se acostuma / Quem vive chorando, um dia se acostuma / Quem vive perdendo, um dia se acostuma / Ah, meu amor, se for pra acostumar / Prende a tristeza no pé da mesa / E vamos nos amar / Pra se desconhecer / Depois se acostumar" (Costume - Chico Saraiva, Celso Viáfora) ou "Usando as chaves da cidade / Eu tranco as portas / marginais / e o metrô / Será a cidade enfim / De mais ninguém / Só de nós dois / Eu quero a cidade assim / Não em milhões / toda pra nós dois / Carros bagunçados pelas ruas / quase tudo que passou / De rosto colado nós / dançamos sobre esse chão / multicolor" (Multicolor - Leo Bianchini, Fabio Barros)
O título do álbum saiu da letra desta bela parceria de Fred Martins e Francisco Bosco (cujo verso mais desconcertante, no entanto, é "Eu que tô sem chão no alto da gangorra")
Reparem que a segunda estrofe da canção, que se inicia com o verso da gangorra, vem com ritmo acelerado e a melodia torna-se picada, nervosa, criando um efeito, digamos, dramático. O céu vai ficando claro, você me esquece e eu afundo. Essa foi digna do tempo do toca-discos, aliás em perfeito contaponto à proposta da letra de O Samba me Diz, que abre o disco, e da qual já falamos aqui.
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